Monday, November 21, 2005

PUBLICADO NA REVISTA CULT Álbum de Família


1. MEU TIO, O FILÓSOFO RODOLPHO

De tanto ler Heidegger e os antigos hindus, meu tio, o filósofo Rodolpho, chegou à conclusão de que nada existia. Era tudo Maya. Ilusão.
O Imposto de Renda não existia. Não existia Barulho, Contas, Artrite, Assalto, Polícia, Testemunhas de Jeová Vendendo Revistas, Carros a 120KM Por Hora, A Palavra Sovaco, Vazamentos, Falsidade, Suco de Mangaba, Mofo, Queda de Cabelo, Efeito Estufa, Motoboys, Traças, Propaganda Subliminar, Colonização, Ejaculação Precoce, O Cego Geremias na Beira da Estrada, Multinacionais, A Besta Fubana, Prisão de Ventre, Alunos Relapsos, Silvio Santos, Efeito Estufa, O Carro Novo do Vizinho, O Som Novo do Vizinho, A Mulher Nova do Vizinho, Vendedores de Seguros, Miopia, Buraco na Camada de Ozônio, Segunda-Feira, Outro-Tipo-de-Música-Que-Não-a- Clássica, A Cor Roxa, Engarrafamentos, Visitas Fora de Hora, Dengue Hemorrágica, Efeitos Colaterais, Pressão Alta, Beijo de Judas, Gatos no Cio Em Cima do Telhado, Quadros de Hotel de Terceira, Incontinência Urinária, Azia, Falsos Amigos, Poetas de Botequim, Enxaqueca, Mentiras, Poeira - meu tio não parava de rir.
Levaram-no.
No hospício recebeu doses generosas de eletrochoque (lá chamam isso de eletroconvulsoterapia) e de todos os bons fazedores de monstros.
Deram-lhe Thorazine (um fazedor de vampiros - efeitos colaterais: hipersensibilidade ao sol, olheiras, alterações no ciclo do sono, morbidez, e outros).
Deram-lhe Hadol (um fazedor de múmias - efeitos colaterais: rigidez cadavérica, sono profundo, resecamento da pele, e outros).
Deram-lhe Lítio (um fazedor de zumbis - efeitos colaterais: tremores, cabelos espetados, pupila dilatada, apatia, movimento involuntário dos músculos, e outros).
Tudo em vão.
Puseram-no numa cela à prova de som e de luz. (Não, também a cela não existia.).
Meu tio, o filósofo Rodolpho, nunca mais foi visto.



2. MINHA MÃE, A MULHER GORILA

Seu truque feito com espelhos já não me assustava. Por isso, aos oito anos, ganhei o ofício de bilheteiro.
Passei a gostar do pavor da criançada (o medo imposto ao outro dá a verdadeira medida do nosso mal). E, sempre que podia, sempre que um adulto não notava, à saída eu fazia questão de um susto a mais. Tocando-lhes com minha pata peluda.

3. IRMÃ (Mentira & Gula)

Às vezes pecamos devido a uma necessidade tão nobre e imperiosa que aos céus - estamos certos - não resta outra coisa a não ser o perdão. Por exemplo: a irmã entra em casa e vai ligar o aparelho de TV - acontece que estamos lendo na sala, sala esta que é o único lugar na minúscula residência a oferecer o mínimo conforto à leitura, e nós, ao contrário da irmã, adoramos ler. Logo, não resta outra coisa a não ser - na fração de segundo que preenche o tempo antes de os dedos gordos da irmã alcançarem o botão - mentirmos. NÃO HÁ ELETRICIDADE, gritamos. Fazemos isto, religiosamente, todos os dias. E ela, burra que é, acredita, suspira e se vai. Pena a paz não durar muito: há sempre a possibilidade de a irmã burra-gorda-glutona abrir a geladeira, perceber a luz acesa e – num raro lampejo de inteligência - concluir que a eletricidade voltou.

4. ELEGIA (Uma Tia)

Minha tia, igual a mim, também era louca por trens.
Descansava a cabeça (e a vida) em dormentes por tardes inteiras.
Foi um hábito que durou pouco.

5. UM MISTÉRIO

Adorava o campo. E trabalhando de sol a sol meu irmão Akás conseguiu o mais belo vinhedo do São Francisco. Fatalmente haveria de colher uma bela safra, obter vinho da mais alta linhagem. Porém quis o destino - devido a razões misteriosas - que fosse encontrado morto na tão bem cuidada plantação; e também quis o destino - razões não menos misteriosas - que as uvas não amadurecessem. Passaram as estações e elas continuaram viçosas porém verdes; como se esperassem – esperassem o quê?

6. TRANSPORTE (Papai)

Minha fome misturou-se à Ave Maria de Schubert, quando, sozinho, subi para o ônibus e tomei assento na primeira poltrona. A iluminação estava fraca, o que me convinha. Apesar de meio entorpecido de cansaço, não pude deixar de notar: o senhor sentado ao meu lado era o poeta Manuel Bandeira. Ou o seu perfeito sósia. A princípio não dei muita importância. Só me preocupei mesmo com a alta velocidade do veículo e sua falta de atrito, como se voássemos. “ No nosso tempo era mais interessante”, alguém comentou. “Este mundo está a cada dia mais feio”, disse outro alguém. Olhei pela janela. Ruas desertas, como se fosse alta noite. Comecei a me perguntar se não havia tomado o ônibus errado. “Não creio” , me disse o poeta. Polido mas irônico. Detestei ter deixado escapar o pensamento. De qualquer forma, o veículo ganhou mais velocidade, tornando impossível distinguir qualquer traço no mundo lá fora. Virei a cabeça para constatar, todos se vestiam de modo antiquado, como num filme antigo. O poeta bateu no meu ombro: “somos muitos”, e dessa vez deixou escapar um sorriso. Era o poeta Manuel Bandeira, eu não tinha mais dúvidas. Somos muitos, repetiu, mas não se preocupe, alguns você conhece. Pedi parada, ia descer. Estava farto do absurdo kafkiano-nada-original. O poeta balançou a cabeça e caçoou de mim. E ele tinha razão, eu não poderia descer: Porque do fundo do veículo surgiu um homem, um homem que eu não via há doze anos. O poeta bateu de leve em minha coxa, me incentivando. Então eu fui. Ele estava um pouco diferente, mais moço do que quando falecera, um pouco mais alto, sorridente. Mas, seguramente, era o meu pai.